sexta-feira, 11 de março de 2016

Meu dia de Clarice Lispector


Madrugada fria. Eu, alta como uma pipa.
De  álcool, de tédio. Já tinha testado todas as posições que minha cama de casal pode oferecer, mas não era capaz de permanecer por mais de cinco minutos no mesmo lugar. Queria acreditar que havia adormecido, mas meus olhos se abriam estatelados ao som de insignificantes grilos.
“Droga, estou acordada...”, pensava, irritada.
Abri e fechei o laptop umas quinze vezes, até finalmente desistir de lutar com a vontade gigante de escrever.
Redigi umas cinco frases e parei.
“Banho.”
Desci as escadas meio cambaleante, concentrada para não tropeçar nos degraus. Cheguei, por fim, ao banheiro do andar de baixo.
Consegui ficar calma por longos dez minutos. E veio o frio. Demorou mais meia hora até que meu queixo parasse de tremer. A essa altura, eu já tinha tomado a segunda dose de whisky e o relógio marcava impressionantes 02:31 am.
Abri o laptop mais uma vez.
“Preciso de música nessa porcaria”.
Isso... “Canto para minha morte”, é o que eu preciso agora.
Raul Seixas, claro. Porque quando você não está no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, você certamente está assim, só que em outro cômodo da casa. E só o Raul entende dessa merda.
Ou talvez eu até pudesse ouvir “quando eu morri”.
Porque o vazio era tão, mas tão grande, que só faltava morrer, mesmo. Seria um alívio, porque pelo menos eu não teria que segurar o coração para não sair do corpo, tão acelerado que estava.
Um milhão de pensamentos, o coração acelerado, os olhos esbugalhados, o corpo detonado, o coração partido, as horas voando, os braços dormentes, o cansaço, a adrenalina, e o pior de tudo: o silêncio. Minha respiração ofegante me irritava demais.
Celular. Laptop. Celular. Laptop.
Cigarro, cigarro, cigarro. Até cansei de usar o isqueiro e decidi acender um cigarro com a ponta do outro. E aí cansei de fumar.
E nada de sono.
Celular. Raul me irritando. Silêncio.
“Ok, talvez um pouco de Sons of Anarchy”
Mas que merda, eu não conhecia os personagens, e eles falavam gíria demais. Irritante.
Nunca fui tão ignorada, sentia cheiro de coisa errada no ar, e meu faro sempre foi excelente. Pensava em tudo, nada fazia sentido. Eu estava horrível. Mas horrível por dentro. Só eu conseguiria me ver daquela forma. Ninguém mais. Mais cedo, havia ajudado duas grandes amigas. E antes disso, havia jantado com outra. Eu ri tanto, fiz planos, tomei cerveja, comi frango com páprica picante. Estava tudo bem. Até não estar mais.
E nada do que eu pensasse, nada do que eu dissesse, poderia reverter aquele quadro estanho que havia sido pintado.
Quem é que dorme assim? E isso é justo? Eu estava na minha. Vivendo a vida, fazendo minhas coisas. E tudo estava calmo.
Não tinha sido outro dia mesmo que combinei a viagem com Michael para Guatemala?  E o Rock in Rio? E o Helloween? E os homens todos que queriam estar comigo?  Por que tudo isso estava tão sem sentido? Por que entre sete bilhões de pessoas, tinha que ser justo alguém que não dá a menor importância pra minha existência? Haverá mais dias como este?
Eu vou mesmo ter que gastar um dia inteiro da minha vida entre lágrimas e músicas de merda que me deixam ainda pior?
Não quero ouvir música de feminista berrando como somos tão fortes. Eu não quero me sentir forte.
Quero ser fraca! Exijo poder exercer meu direito à fraqueza.
E como pode um ser humano ser leviano diante de sentimentos tão sinceros? Quem ousaria? Que espécie de pessoa podre faz isso?
Senti vontade de ligar pra uns três ou quatro carinhas para pedir perdão. Sério, eu queria ficar em paz com eles. Sempre haverá o fantasma do Sauro. E do Leandro, do Gustavo, do Mark. Eu parti o coração deles todos. E o pecado deles? Gostar demais de mim. Então é isso, eu mereço essa merda toda.
Amanheceu, me toquei de que não havia dormido. Peguei uma mensagem no celular. A mensagem que só confirmou o que eu já sabia, o que o universo sabia, mas me faltava aceitar. Às vezes você se importa “horrores”. E a outra pessoa simplesmente não se importa. E se você acha que isso é um castigo, o problema é seu.
E fiquei com vontade de cavar um buraco pra enfiar minha cabeça dentro. Fiquei com mais vontade do que nunca de morrer. Queria sair correndo, sair da frente do celular, estava me sentindo sem roupa na frente de quarenta alunos do primeiro ano do ensino médio. Sentia o mundo rindo de mim. Do quanto eu era patética. Era como se eu tivesse sido muito idiota por meses, e agora a idiotice estava exposta numa feira do ramo da tosquice.
Imaginei que um dia essa mensagem fosse chegar. Imaginei um diálogo, eu vi todas as cenas, mas aquela filha da puta de mensagem resolveu não seguir meu roteiro mental.
Deu tudo errado. E para minha tristeza, eu ainda estava ali. Como quem junta cacos de vidro de uma louça caríssimal, fiquei tentando encontrar desculpas para mim mesma. A única pessoa a lamber minhas feridas era eu.
Às oito da manhã, eu tinha que parecer jovem e bela. E pareci. Pra isso o homem criou o Engov.
E os chefes que carregam Engovs e oferecem os comprimidos para as assistentes de ressaca.
Ah, foda-se.
Que se dane tudo isso. Hoje tem mais. Você acha que estou com medo de não dormir? O homem criou a maquiagem. E ela é útil para as reuniões matinais – aquele momento em que você tem que parecer sóbria e saudável.
E viu Deus que o café era bom. Consideramos justa toda forma de cafeína. Todas as inas.
Deus abençoe essa merda toda, e que o tempo passe depressa. Ou não. Tanto faz. Já fui vasculhada, desrespeitada, quem sabe agora não role um “até nunca mais”?

É a deixa perfeita.