segunda-feira, 9 de junho de 2014

Roda gigante

Estava viajando. Já havia passado pelo que posso chamar de maior terror do mundo – doze intermináveis horas dentro de um avião cercada de estranhos que não falavam o meu idioma.
Às vezes eu entendia o que o comandante falava quando passava do francês ao inglês, mas ainda assim, era agonizante.
Então, enquanto a agonia consumia todo o meu apetite e fazia o álcool das garrafinhas de vinho que tomei sem hesitar evaporarem de alguma forma dentro de mim, eu pensava no preço que tinha que pagar para realizar um dos grandes sonhos que nutri, apesar de toda a bagunça que tinha sido minha vida na altura dos vinte e cinco anos.
Imaginava o quanto aquelas pessoas chiques haviam se preparado para finalmente descerem lindas e ricas do avião – deviam ter dinheiro pra caramba. Eu, coitada! Emprestei casacos, calças de inverno, toucas, botas, emprestei quase tudo.
Levei algumas centenas de euros, um cartão de crédito e a fé de que ainda que eu tivesse que trocar o almoço pela janta, faria isso na cidade luz. Eu trocaria o almoço pelo jantar em Paris.
Nunca fomos de família rica. Eu não podia e nem tinha dinheiro pra gastar. Mas havia algo que eu sabia fazer muito bem: sentar, observar e escrever.
Era uma noite gelada e úmida. Estava a alguns degraus de tocar a água congelante do Rio Sena com uma bolsa imensa repleta de toda sorte de utensílios.
Peguei um caderninho que havia comprado no aeroporto e vasculhei até encontrar a caneta que me fizera companhia durante a viagem de ida.
Ao longe, via a roda gigante toda iluminada. Ela era a personificação do romantismo. Não sei dizer se as pessoas que formavam aquela fila imensa para um passeio de uma volta lenta naquele objeto estavam em busca de fortes emoções ou apenas queriam ser tomadas pela emoção de viver um momento de extremo romantismo. Se fossem amigos, provavelmente se lembrariam daquela noite com poemas, frases de autores famosos escritas sobre as fotos tiradas nas diversas alturas da roda gigante. Essas pessoas tinham tanta sorte com seus sorrisos imensos. Foi quando me dei conta de que estive durante muito tempo sozinha demais para pensar em amor, mas precisava, ainda que inconscientemente, acreditar que tudo isso passaria. Como meu medo de voar. De não dar conta do recado, de não saber o que fazer quando algo der errado. Eu estou em minha própria montanha russa. Claro!
Voei de volta, depois voei outras vezes e prometi que nunca deixaria de fazer mais nada por medo. Eu certamente cederia às tentações com mais freqüência e o único detalhe que permaneceria como estava era o meu coração no que dizia respeito a deixar outro homem entrar. Até que a hora certa, se é que existe isso, chegasse.
Quando estou no banco do passageiro com as mãos suadas, vendo o velocímetro marcar uma velocidade bem maior que a permitida, fecho os olhos e penso: estou alta o suficiente para morrer sem sentir pena de não viver mais? Porque amo tanto a vida!
Quero a loucura que me permita inspirar e expirar sem cessar. Quero ter a coragem dos pára-quedistas. Mas quero viver também. E talvez, a grande sacada da vida seja justamente o fato de que o meu prazo de validade aqui é contado e a única coisa que meu medo fará por mim é eliminar duas ou três grandes oportunidades de sentir a adrenalina consumindo cada célula do meu corpo. Seriamente, eu preciso pensar com mais carinho e afinco a esse respeito.
Troquei a cerveja pela vodca e descobri que prefiro vodca com guaraná. E três pedras de gelo.
Fico alta por prazer. Porque quero ficar bem alta. Senão tomaria só o guaraná.

Aquelas pessoas felizes da roda gigante de repente não são de modo algum mais felizes do que eu com minha vida simples. Há esse cara que me aguarda do lado de fora com óculos escuros e pose de bad boy. E eu amo vê-lo ali quando encerro meu expediente. Porque então começa outra parte do meu dia – a que eu sei que será, de verdade, uma roda gigante. E eu vou rir, chorar, gritar, silenciar, fotografar, postar, comentar. Farei tudo que sentir vontade, porque sei que serei tomada por todo tipo de emoções. Com doses ordinárias de vodca. Desculpem. Eu não sei mais como é pedir desculpa por abrir o coração.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Um brinde à nossa coragem.

Às vezes é difícil ver a mudança de onde você está. Aquela semana de dezembro se transformou em junho, e assim, sem que você pudesse se dar conta, sua vida mudou.
Agora não são mais duas pessoas.
Eu poderia estar falando de mim, mas não hoje. Vi com uma satisfação incontestável a vida de pessoas queridas mudando silenciosamente de forma a torná-las aprendizes do companheirismo. Há que se ter um coração de pedra para não permitir que aquela lágrima verta - uma tradução e possivelmente a única - daquilo que também transborda em meu coração.
Tocamos com dedos de fada e das formas mais inusitadas os corações das pessoas. E elas nos tocam da mesma forma. De modo a completar um mundo que por tantos anos pareceu equivocadamente feliz. 
É uma guerra constante entre o próprio desejo de liberdade ainda latente e esse novo universo onde tudo é contado aos pares. E segue se multiplicando, porque uma pessoa nunca chega só em nossa vida.
Ela traz suas histórias, sua própria lenda pessoal, seus sonhos destruídos, ela chega com uma bagagem que, assim como a sua, pode ser também uma caixa de pandora.
Então cabe aos seus dois lados decidir qual parte desta vida vale mais a pena: a união de dois mundos diferentes que se complementarão e trarão a força da muralha da China, ou a já tão batida vida de ceder às rotinas de todo o check list de cada dia de sua semana, que foi como a semana passada, o mês e até mesmo os anos passados.
Houve tentativas frustradas na vida de todos nós e não há como apagar, mesmo que esse desejo arda em nós.
Mas agora, veja... Há uma porta imensa aberta com paisagens nunca antes vistas. Rostos infantis tão cheios de amor que emocionam pela simples existência. Vozes e passos que te lembram o tempo todo que o lugar que antes fora tão vazio, agora tem seus cômodos ocupados, bagunçados, cheios de um novo ar - um ar puro e fresco que emana desse tipo de felicidade que só pessoas como eu e você - com coragem para dar o próximo passo em direção ao desconhecido - terão a chance de conhecer e viver.
Ao ser de força incomparavelmente maior que a minha, o meu muito obrigada.
Agradeço por cada amiga e amigo, por cada ente, por cada vida que soube enxergar que era o momento de ser feliz e abraçou - com ou sem medo, o fantástico prazer de compartilhar sorrisos, lágrimas, problemas, soluções, derrotas, vitórias, novas vidas, e tudo mais que faz essa escolha ser tão digna de nós.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O bom e o excelente

Lembro todos os dias quando o despertador me acorda às 5h30m da manhã que sou e sempre fui mãe solteira, apesar de um dia ter sido casada. Lembro que odeio esse rótulo.
E lembro que infelizmente não foi possível desempenhar bem dois papeis ao mesmo tempo – meu chefe costuma dizer: “Tem o excelente e tem o bom... Se não puder ser excelente, que seja bom. Já é um começo.”
Odiei ouvir isso nos primeiros meses. Achava, além de deselegante, absurdamente desmotivador. Mas o fato é que eu não tenho sido excelente.
Com muito esforço, sou boa.
Então ele talvez tenha razão. Eu quis ao menos ser boa mãe, e fazer as vezes de pai, quando a situação pedia. Só que eu não sei o que o pai faz.
Pai provê o sustento? Ok, eu faço.
Pai vai às reuniões escolares? Eu não sei. Alguns vão. E sempre que vejo um pai sentado na carteira do filho, sinto vontade de chorar.
Sinto vontade de morrer.
E um pedacinho do meu coração se acaba ali mesmo, diante do professor e daquele quadro verde velho.
Pai leva ao hospital. Sim, outro dia, eu e minha mãe aguardávamos meu atendimento no pronto socorro e eu vi um pai com sua filhinha de uns dois anos, a menina não parava quieta e enquanto ele corria atrás dela, contava pra nós (todos que estávamos sentados ali) sobre as travessuras dela com um sutil toque de orgulho, tipo “minha filha já faz tudo isso e nem tem dois anos ainda, sabem?”
Eu lembro que meu pai me fazia ajoelhar de manhã para a oração do Pai Nosso. E depois ele rodava a gente, enquanto cantava “hoje é domingo, pede cachimbo...”
Depois era hora de ir pra igreja – e eu só gostava mesmo porque era domingo, e domingo tinha macarrão, maionese e frango frito com coca-cola em casa. Era só esperar o culto terminar.
Não dei nada disso pra minha filha.
Eu não a poupei da ausência feroz de um pai – não porque ela não tenha um, pois tem. Mas, porque escolhi mal. Ou simplesmente não escolhi.
E lá se vai outro pedaço do meu coração.
Não tendo o pai para prover o sustento, levar ao hospital, ir às reuniões escolares, tudo isso coube a mim. Mas eu ainda precisava ser mãe.
Não teve jeito. Não alcancei a excelência. E sei que só serei lembrada como uma pseudo heroína quando daqui a cinqüenta anos, minha filha estiver contando pros netos dela sobre como a mãe dela deu duro para conseguir fazer as coisas acontecerem.
Fora isso, sou só mais uma mulher que faz o que milhões de mulheres fazem: dão o que têm pra dar. Tiram um rim, um pedaço do fígado, a retina, uma mão ou duas, um pé, uma perna, se precisar, tiram o próprio coração.
Não sei o que queremos dessa vida. Eu hoje, sendo bastante sincera, só queria ter a chance de cair num silêncio tão profundo quanto o Titanic no oceano.
Meu olhar deu aquela implorada por um abraço nas primeiras horas do dia. Mas olhos não falam direito o que a gente quer dizer, então digamos que eu tenha sido mal interpretada e soou como se eu fosse a criatura mais dramática do universo. Talvez eu seja.
Quando você não tem força pra espancar alguém, você grita. Ou chora.
Eu faço os dois.
E depois limpo os borrões de maquiagem, viro uma xícara de café e retoco o batom.
A vida pede... Não, acho que a vida exige. Porque ninguém dispõe de tempo hábil para tantas lamentações.
De qualquer forma, se tudo mais falhar, eu terei sido uma “boa” mãe... Uma dona de casa nota cinco, o que me faria passar de ano. Ou, no máximo, me deixaria de recuperação, mas aí eu capricharia mais. Sei lá. Se precisar, eu faço.