De repente senti medo. Lembrei do
dia em que ele me contara sobre ser portador de uma doença incurável. Havíamos
conversado inúmeras vezes a respeito, cheguei a acompanhar parte de seu
tratamento, e ele fazia questão de sempre me garantir que teria muito tempo
pela frente. Por alguma razão, aquela frase não soou bem.
- Não é nada do que você está
imaginando. Conheço essa cabecinha maluca, mas não se preocupe com isso, está
tudo bem. Só quero que esse fim de semana seja especial e inesquecível. Nunca
viemos pra cá, não sei se um dia voltaremos. É simples – quero ter essas
lembranças. Quero que você as tenha.
- Quer me presentear com
lembranças?
- Não seria perfeito? Eu li seus
livros, Boo. Tenho os dois. Então o que a faz pensar que não pode ter nada
parecido com as histórias que criou?
- Ah!
- Não, não é isso! Você quer
entender errado! Deixa de ser tão teimosa e aceita o que estou tentando te dar
aqui, por favor!
- Sabe quantos anos eu passei
desejando que algo assim pudesse acontecer?
- Faço ideia.
- E agora, o que o fez querer?
- Você vai entender, eu prometo.
Mas não adianta tentar explicar nada agora. Vem, vamos sentar na areia, a noite
está só começando e eu não quero perder nem um segundo dela.
- Não sei, não...
Ele me arrastou de volta pra areia e
retomou a conversa:
- Então ficamos anos sem contato.
Muitos anos.
Ao terminar esta curta frase, Monster
virou sua taça de vinho de uma vez. Respirou fundo, erguendo a taça
acima da cabeça e devolvendo-a em seguida na bandeja:
- Eu esqueci você quase completamente,
sinto muito por isso.
- Nunca te disseram que se quiser
ser honesto, tem que praticar o bom senso também, Monster?
- Acha que eu me importo muito com
isso, Boo? Já devo ter magoado você de todas as formas possíveis – estou
tentando te contar o meu lado, assim quem sabe você resolva falar abertamente comigo
também , não é mesmo?
- Ótimo, então vá em frente, estou
curiosa pra saber sua parte da história.
- Pois bem. Eu quase te esqueci.
Como quase esqueci outras pessoas. E nem por isso elas deixaram de ter sua
importância na minha vida. Acho que todo mundo tem aquele estalo, aquela hora
que chama por mudança. Isso aconteceu comigo, eu te contei sobre quando fui
embora. Foi um período de muita solidão e me voltei totalmente ao meu
relacionamento. Era tudo que tinha na época, e era tudo que eu acreditava
precisar no momento. Tive que deixar muita coisa pra trás. Pessoas também.
Infelizmente você estava nessa lista imensa.
- Conheço essa parte.
- Mas lembro do dia
- Então sabe que voltei ao nosso
ponto de encontro nos anos seguintes. Não por acreditar que você pudesse miraculosamente
aparecer, mas porque aquele jardim se tornou uma espécie de lugar sagrado para
mim. Nunca deixei de procurar, eu via o que tivemos como algo realmente único.
- E foi, não há dúvida. Essa é a
razão de estarmos aqui hoje.
- Para mim, Monster. Hoje eu sei
que o que vivi aconteceu só na minha cabeça. Não vejo mais como um problema,
nem algum tipo de lembrança dolorosa. Foi só algo que me marcou, pela
intensidade talvez. Eu estava completamente apaixonada.
- Sempre pensei que estivesse me
metendo em algo que já existia entre você e o Brian. Estávamos todos juntos
quando nos conhecemos, eu saia que ele era apaixonado por você, e meio que me
via como um intruso, nossa proximidade deixava o cara desolado, enciumado. Quando
soube que você havia procurado por mim, fiquei até preocupado com a expressão
dele. Senti que talvez pudesse ter traído meu melhor amigo. Foi o que deu a
entender. A garota dele estava procurando por mim.
- Isso é ridículo! Nunca houve nada
entre nós, nunca nem ao menos passou pela minha cabeça. Não sei de onde tiraram
tamanha maluquice.
- Ele me fez crer que você era
louca o suficiente para ir atrás de mim como da primeira vez. Fiquei assustado,
confesso. Seria péssimo se você aparecesse do nada diante de mim e da minha
nova vida. Eu teria que mandar você embora, e talvez não conseguisse. Fiquei
aterrorizado com a ideia de tê-la por perto.
- Não sabia que você tinha medo de
mim...
- Medo do que poderia acontecer se
nos reencontrássemos. De repente, fico sabendo que você está bem viva e atrás
de mim.
- O que foi que eu fiz pra causar
tanto pânico assim em você?
- Esqueceu-se do dia em que fomos
descobertos?
- No dia em que “eu” fui
descoberta. Foram atrás de mim, e por pouco não me pegaram.
- Eu estava junto. Acha que ela foi
atrás de você sozinha?
- Como assim?
- Boo! Acorda! Como você imagina
que ela tenha conseguido o endereço de onde você estava? Telefone? Ela te ligou
na minha frente!
- Que horror!
- Pois é. E seu cheiro estava em
todos os lugares. Ela sabia que era perfume de mulher, sabia que você tinha
estado lá. Você quase destruiu meu casamento, Boo.
- Eu sinto muito por isso. E por
outro lado, não me lembro de ter te pedido pra me ir me encontrar.
- Você não pediu. Mas sua amiga me
obrigou. E não me olhe com essa cara de espanto!
- Eu não entendo...
- A Leah me garantiu que eu
destruiria você se não aparecesse.
- Então... Espera...
Fiquei atordoada. Por que Monster
não iria me ver por vontade própria? Não éramos tão ligados? Ele não gostava
tanto de mim? Não queria me ver? Como assim?
- Boo... Você tem que entender...
- Tenho. Você quer criar lembranças
boas agora, mas está destruindo as melhores lembranças daquela época, é como se
me dissesse que nada aconteceu de verdade. É como se eu tivesse vivido uma
mentira.
- Foi tudo muito real.
- Só não teria acontecido se eu
realmente não tivesse movido o mundo por sua causa. É isso, não é?
- Sim... Foi graças à sua
insistência que as coisas aconteceram.
- Minha insistência...
- Não quer dizer que não tenha sido
maravilhoso.
- O que foi maravilhoso? Você nem
se lembrava.
Sentia que a cada frase, era como
se um pedaço de toda aquela bela paisagem diante de mim se desfizesse. Tínhamos
um cenário perfeito, um momento único e as verdades que surgiam me faziam
querer vomitar. E não havia para onde fugir, nem pra quem ligar. Estávamos
diante de nossa própria história, e ela nunca pareceu tão amarga.
Voltamos à estaca zero. Todas as
nossas brigas dos últimos anos tinham sido pelo mesmo motivo: eu não aceitava
que ele pudesse ter mudado tanto. E ele não aceitava que eu ainda fosse tão
passional. Não era possível encontrar mais nosso ponto de equilibro – até que
tivemos que nos afastar de vez, para não terminar nos odiando.
E sentia raiva de mim por não
conseguir fazê-lo entender meu ponto de vista. Ele me deixava irada com sua
necessidade de atenção. Monster era lindo, e sabia disso. Mas tinha que ouvir
isso de todas as mulheres do mundo.
- Graças a você, tivemos aquele
momento. Eu não estou dizendo que você errou
- Já disse tantas vezes que me
arrependo, mas continua parecendo mentira, eu sei que não posso sentir muito
por ter sido corajosa.
- Deve se orgulhar da forma como
abraça a vida, isso não é para muitos. Eu tenho orgulho de você. Pode estar
zangada, irada. Pode ter sido traída. Se te pedissem, você voltaria atrás. Você
cederia.
- E desde quando isso é motivo de
orgulho? Soa mais como fraqueza.
- É preciso ser forte para ceder. É
preciso uma força infinitamente maior para romper com a mágoa e aceitar um
pedido de perdão, quando há tanta dor por trás. Eu não sei o quanto a
machuquei. Sei que não quero experimentar essa dor nunca. Aprendi com suas
explosões, com seu silêncio e especialmente, aprendi com sua distância. Você,
mesmo ferida, ainda consegue esbanjar amor. Não conheci ninguém assim. Então,
sim, eu tenho muito orgulho de você. E você devia ter também.
- Pra onde esse amor todo me levou,
Monster? Toda essa pseudo-bondade? Eu estou longe dos meus ideais, longe de ser
alguém emocionalmente tranquila. Estou só.
- Seu amor te trouxe pra uma ilha
- Hahaha... Você tinha que terminar
com uma piada! Tão típico!
- Exceto pelo fato de que não é
nenhuma piada.
E outra vez, Monster se aproximou
demais de mim, estava pronta para desviar de seus lábios, quando eles tocaram
minha testa. Não tinha certeza se minha expressão era de alivio ou decepção. Queria
lutar contra o beijo para ceder completamente depois, e ele beijou minha testa.
É, acho que entra na lista de decepção.
- Deita aqui comigo, vamos olhar um
pouco esse céu lindo.
Deitamos então sobre a areia, e
realmente, o céu estava lindo, todo iluminado com as estrelas e a lua cheia
subindo lentamente. Ficamos bem próximos, quase abraçados, mas em total
silêncio e nenhum movimento.
Eu sabia que aquela noite ainda
traria outras surpresas, mas não queria tentar prever nada. Tinha ao meu lado
alguém que me fizera descobrir o significado da palavra “paciência”, então, era
justo que eu tentasse aquietar meu coração escandaloso.
Tínhamos o som dos grilos, das
ondas quebrando na areia, o som do vento balançando as árvores... E um novo
som... Vindo dele. Chorando? Fiquei com medo de olhar, contive minha
curiosidade e apenas o abracei sem dizer nada.
Ele respondeu ao abraço, pousou o
braço direito sob meu pescoço e com a mão esquerda começou a acariciar meu
braço, como quem tenta aquecer. Aquele silêncio, seguido do som do choro
baixinho dele e o abraço ali, na areia, no meio da noite, fizeram nascer uma
espécie de paz em mim.
Já não havia nada a perder, nada
que não tivéssemos dito antes para machucar, ou afastar. Não havia outro
motivo, senão nossa vontade – a nos manter inertes na areia. Não tínhamos que
ser nada. Nem entender, ou aceitar coisa alguma. A nós, cabia somente deixar os
minutos correrem – deixar o dia ir embora, deixar o mundo acontecer ao redor.
Estávamos, enfim, criando uma lembrança. Algo para o resto de nossas vidas.
Um momento real, ainda que
parecesse ser bonito e bom demais para ser verdade.
- Está frio aqui, Monster... Vamos
entrar, estou congelando.
- Tudo bem.
Recolhemos as bandejas e seguimos
para o chalé. Deixamos a pequena cozinha em ordem juntos, enquanto eu lavava as
taças, ele deixava tudo enxuto e já arrumava lugar no armarinho para guardar os
utensílios. Ele tinha muitos filmes no notebook, então aproveitamos para
selecionar alguns que ambos ainda não tivessem assistido.
- Ah, Monster, vamos ver Django de
novo!
- Mas já vimos esse filme tantas
vezes...
- Eu gosto dele. Depois de Pulp
Fiction, com certeza é meu favorito.
- Também gosto. Bom, então que seja
Django.
Perdi a conta de quantos
travesseiros havia naquela cama, quase não tinha espaço para nós. Finalmente,
conseguimos nos posicionar confortavelmente e demos início à sessão cinema na
ilha. Sentia um sono absurdo, e ao mesmo tempo, não queria perder nenhum
segundo que fosse da companhia dele, embora soubesse que ele ainda estaria ali
quando eu acordasse.
Depois de muito relutar, acabei
adormecendo.
Acordei cerca de duas horas depois
com o som da música que vinha do notebook. Sabe aquele momento em que a música
externa penetra no sonho? Foi algo assim. Monster também havia adormecido,
ainda estava com os óculos, que eu tirei da forma mais sutil que consegui. Ele
se moveu com o meu toque, mas logo voltou ao sono profundo.
Sorri ao vê-lo ali, tão silencioso
e pacífico.
Não sei dizer quantas vezes sonhei em
viver novamente um momento como aquele, em que eu acordava ao seu lado, e para
completar, ao som de “By your side”, da Sade.
“Eu quero uma foto dessa noite. Só
a imagem mental não é suficiente. Ele nunca esteve tão lindo quanto agora –
todo indefeso, dormindo esse sono pesado, tão tranquilo, tão
lindo... Acho que alguém aqui está em apuros...”
Levantei da cama tentando não fazer
barulho e caminhei em direção à mesa, queria meu cigarro e, se possível, outra
taça de vinho.
Embora Monster não fumasse e não
pudesse beber muito, ele não mostrava o menor incômodo com o fato de sua
“sei-la-o-quê” fumar e beber muito mais que ele.
A porta rangeu mesmo com minha
melhor tentativa de abrir sem incomodar o sono de Monster, e ele deu um pulo na
cama, levantou assustado.
- Desculpe, desculpe! Eu só ia lá
fora fumar, não queria acordá-lo! Por favor, me desculpe... E volte a dormir...
- Tudo bem, que horas são?
- Acho que quase cinco.
- Não vimos o filme todo...
- Não esperava que isso
acontecesse, de qualquer forma. Monster, vou lá fora fumar, ok? Volto logo.
- Vou voltar a dormir, se não se
importar.
- Faça isso, eu entro logo em
seguida.
Às cinco da manhã, aquela ilha
parecia mais uma geladeira gigante. O tempo estava fechando, o vento fazia
bastante barulho entre as árvores e eu tive que me apressar com o cigarro para
voltar logo e me aquecer debaixo dos edredons.
Corri para a cama com o queixo
tremendo e as mãos congelando.
- Ai que frio, meu deus!
- Vem aqui, Boo. Mas não toca em
mim, odeio mãos geladas – Monster riu.
Como eu tinha voltado do vento
gelado, o corpo dele parecia muito quente, e foi quase impossível não notar que
havia uma protuberância evidente sob suas calças. Tentei disfarçar e
mudar a posição do meu corpo a fim de não encostar-me naquela região, mas ele
se posicionou ainda mais próximo de mim.
Senti que corria perigo – pela
primeira vez.
- Monster?
- Hum?
- Você sempre acorda assim?
- Assim como?
- Assim...
- Ah, isso. É, sempre...
- Ok, vou voltar a dormir então.
- Vai?
- Não vou?
- Não sei...
Mas enquanto eu tentava fingir que
nada estava acontecendo, senti sua respiração em minha nuca, e logo seus lábios
estavam tocando meu pescoço, orelha, e eu não queria nem pensar em lutar contra
o que quer que fosse. Ele virou meu rosto delicadamente, e eu terminei de virar
meu corpo, nos posicionamos de frente um para o outro.
Toquei seu rosto, corri o dedo
contornando seus lábios – ele sempre teve uma boca linda, o sorriso mais
gostoso de se ver. Amava vê-lo em dias felizes, era uma imagem única. Nossas
respirações pareciam sincronizadas. Aproximamo-nos mais, até que nossos lábios
finalmente se tocassem, mas ainda não era um beijo. Eram só os lábios juntos –
senti meu corpo pegando fogo, até que não pude mais conter o impulso e dei
início a um longo e intenso beijo.
Foi como um transe. Uma experiência
diferente, porque eu sempre imaginei como isso pudesse ser, e de repente,
estava acontecendo – eu e ele, juntos, ele dentro de mim, nossos movimentos, o
calor, o suor dele pingando em meu corpo, meu cabelo bagunçado, a mão dele
tentando arrumar as madeixas que caiam sobre o rosto, o modo como ele me
segurava pelos ombros, a força que eu fazia para garantir que ele não se
soltasse de mim, minhas mãos inconstantes correndo suas costas, peito,
segurando seu rosto, beijando sem acreditar que nada daquilo estivesse de fato
acontecendo. Tudo parecia bom, o gosto dele, o movimento de sua língua, sua
dança sobre mim, seu olhar me fitando enquanto eu chegava ao clímax. Eram
muitas sensações e nenhuma habilidade para defini-las. Não se parecia com nada
do que eu havia imaginado – era infinitamente melhor, mais gostoso, era como uma
queda livre – muita adrenalina, o corpo experimentando um desejo
incontrolável, a mente entrando em parafuso, foi louco –
muito mais louco do que eu possa descrever.
Entendi porque era tão bom
estar com alguém por quem nutrimos algum tipo de sentimento especial.
Após ter passado tantos anos
sozinha, escrevendo livros sobre pessoas felizes e suas histórias fantásticas,
era como se eu tivesse me tornado uma personagem de minha própria criação.
"Aos
32, finalmente, depois de longos doze anos, meu deus, doze anos!"
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