terça-feira, 14 de março de 2023

Jornada Íntima - capítulo 2

 

De repente senti medo. Lembrei do dia em que ele me contara sobre ser portador de uma doença incurável. Havíamos conversado inúmeras vezes a respeito, cheguei a acompanhar parte de seu tratamento, e ele fazia questão de sempre me garantir que teria muito tempo pela frente. Por alguma razão, aquela frase não soou bem.

 

- Não é nada do que você está imaginando. Conheço essa cabecinha maluca, mas não se preocupe com isso, está tudo bem. Só quero que esse fim de semana seja especial e inesquecível. Nunca viemos pra cá, não sei se um dia voltaremos. É simples – quero ter essas lembranças. Quero que você as tenha.

- Quer me presentear com lembranças?

- Não seria perfeito? Eu li seus livros, Boo. Tenho os dois. Então o que a faz pensar que não pode ter nada parecido com as histórias que criou?

- Ah!

- Não, não é isso! Você quer entender errado! Deixa de ser tão teimosa e aceita o que estou tentando te dar aqui, por favor!

- Sabe quantos anos eu passei desejando que algo assim pudesse acontecer?

- Faço ideia.

- E agora, o que o fez querer?

- Você vai entender, eu prometo. Mas não adianta tentar explicar nada agora. Vem, vamos sentar na areia, a noite está só começando e eu não quero perder nem um segundo dela.

- Não sei, não...

Ele me arrastou de volta pra areia e retomou a conversa:

 

- Então ficamos anos sem contato. Muitos anos.

 

Ao terminar esta curta frase, Monster virou sua taça de vinho de uma vez. Respirou fundo, erguendo a taça acima da cabeça e devolvendo-a em seguida na bandeja:

 

- Eu esqueci você quase completamente, sinto muito por isso.

 

- Nunca te disseram que se quiser ser honesto, tem que praticar o bom senso também,  Monster?

- Acha que eu me importo muito com isso, Boo? Já devo ter magoado você de todas as formas possíveis – estou tentando te contar o meu lado, assim quem sabe você resolva falar abertamente comigo também , não é mesmo?

 

- Ótimo, então vá em frente, estou curiosa pra saber sua parte da história.

 

- Pois bem. Eu quase te esqueci. Como quase esqueci outras pessoas. E nem por isso elas deixaram de ter sua importância na minha vida. Acho que todo mundo tem aquele estalo, aquela hora que chama por mudança. Isso aconteceu comigo, eu te contei sobre quando fui embora. Foi um período de muita solidão e me voltei totalmente ao meu relacionamento. Era tudo que tinha na época, e era tudo que eu acreditava precisar no momento. Tive que deixar muita coisa pra trás. Pessoas também. Infelizmente você estava nessa lista imensa.

 

- Conheço essa parte.

 

- Mas lembro do dia em que o Brian me contou sobre você ter me procurado.

 

- Então sabe que voltei ao nosso ponto de encontro nos anos seguintes. Não por acreditar que você pudesse miraculosamente aparecer, mas porque aquele jardim se tornou uma espécie de lugar sagrado para mim. Nunca deixei de procurar, eu via o que tivemos como algo realmente único.

 

- E foi, não há dúvida. Essa é a razão de estarmos aqui hoje.

 

- Para mim, Monster. Hoje eu sei que o que vivi aconteceu só na minha cabeça. Não vejo mais como um problema, nem algum tipo de lembrança dolorosa. Foi só algo que me marcou, pela intensidade talvez. Eu estava completamente apaixonada.

 

- Sempre pensei que estivesse me metendo em algo que já existia entre você e o Brian. Estávamos todos juntos quando nos conhecemos, eu saia que ele era apaixonado por você, e meio que me via como um intruso, nossa proximidade deixava o cara desolado, enciumado. Quando soube que você havia procurado por mim, fiquei até preocupado com a expressão dele. Senti que talvez pudesse ter traído meu melhor amigo. Foi o que deu a entender. A garota dele estava procurando por mim.

- Isso é ridículo! Nunca houve nada entre nós, nunca nem ao menos passou pela minha cabeça. Não sei de onde tiraram tamanha maluquice.

 

- Ele me fez crer que você era louca o suficiente para ir atrás de mim como da primeira vez. Fiquei assustado, confesso. Seria péssimo se você aparecesse do nada diante de mim e da minha nova vida. Eu teria que mandar você embora, e talvez não conseguisse. Fiquei aterrorizado com a ideia de tê-la por perto.

 

- Não sabia que você tinha medo de mim...

 

- Medo do que poderia acontecer se nos reencontrássemos. De repente, fico sabendo que você está bem viva e atrás de mim.

 

- O que foi que eu fiz pra causar tanto pânico assim em você?

 

- Esqueceu-se do dia em que fomos descobertos?

 

- No dia em que “eu” fui descoberta. Foram atrás de mim, e por pouco não me pegaram.

 

- Eu estava junto. Acha que ela foi atrás de você sozinha?

 

- Como assim?

 

- Boo! Acorda! Como você imagina que ela tenha conseguido o endereço de onde você estava? Telefone? Ela te ligou na minha frente!

- Que horror!

- Pois é. E seu cheiro estava em todos os lugares. Ela sabia que era perfume de mulher, sabia que você tinha estado lá. Você quase destruiu meu casamento, Boo.

- Eu sinto muito por isso. E por outro lado, não me lembro de ter te pedido pra me ir me encontrar.

- Você não pediu. Mas sua amiga me obrigou. E não me olhe com essa cara de espanto!

- Eu não entendo...

- A Leah me garantiu que eu destruiria você se não aparecesse.

- Então... Espera...

Fiquei atordoada. Por que Monster não iria me ver por vontade própria? Não éramos tão ligados? Ele não gostava tanto de mim? Não queria me ver? Como assim?

- Boo... Você tem que entender...

- Tenho. Você quer criar lembranças boas agora, mas está destruindo as melhores lembranças daquela época, é como se me dissesse que nada aconteceu de verdade. É como se eu tivesse vivido uma mentira.

- Foi tudo muito real.

- Só não teria acontecido se eu realmente não tivesse movido o mundo por sua causa. É isso, não é?

- Sim... Foi graças à sua insistência que as coisas aconteceram.

- Minha insistência...

- Não quer dizer que não tenha sido maravilhoso.

- O que foi maravilhoso? Você nem se lembrava.

Sentia que a cada frase, era como se um pedaço de toda aquela bela paisagem diante de mim se desfizesse. Tínhamos um cenário perfeito, um momento único e as verdades que surgiam me faziam querer vomitar. E não havia para onde fugir, nem pra quem ligar. Estávamos diante de nossa própria história, e ela nunca pareceu tão amarga.

Voltamos à estaca zero. Todas as nossas brigas dos últimos anos tinham sido pelo mesmo motivo: eu não aceitava que ele pudesse ter mudado tanto. E ele não aceitava que eu ainda fosse tão passional. Não era possível encontrar mais nosso ponto de equilibro – até que tivemos que nos afastar de vez, para não terminar nos odiando.

E sentia raiva de mim por não conseguir fazê-lo entender meu ponto de vista. Ele me deixava irada com sua necessidade de atenção. Monster era lindo, e sabia disso. Mas tinha que ouvir isso de todas as mulheres do mundo.

- Graças a você, tivemos aquele momento. Eu não estou dizendo que você errou em ter ido. Não estou dizendo que não gostei – isso seria a maior mentira do mundo. Só aconteceu na hora errada. Qualquer homem se sentiria honrado com tamanha demonstração de amor, Boo. Eu posso ser louco, mas não sou burro. Não pude te dar um dia perfeito como merecia, gostaria de ter feito mais por você, mas foi o momento errado.

- Já disse tantas vezes que me arrependo, mas continua parecendo mentira, eu sei que não posso sentir muito por ter sido corajosa.

- Deve se orgulhar da forma como abraça a vida, isso não é para muitos. Eu tenho orgulho de você. Pode estar zangada, irada. Pode ter sido traída. Se te pedissem, você voltaria atrás. Você cederia.

- E desde quando isso é motivo de orgulho? Soa mais como fraqueza.

- É preciso ser forte para ceder. É preciso uma força infinitamente maior para romper com a mágoa e aceitar um pedido de perdão, quando há tanta dor por trás. Eu não sei o quanto a machuquei. Sei que não quero experimentar essa dor nunca. Aprendi com suas explosões, com seu silêncio e especialmente, aprendi com sua distância. Você, mesmo ferida, ainda consegue esbanjar amor. Não conheci ninguém assim. Então, sim, eu tenho muito orgulho de você. E você devia ter também.

- Pra onde esse amor todo me levou, Monster? Toda essa pseudo-bondade? Eu estou longe dos meus ideais, longe de ser alguém emocionalmente tranquila. Estou só.

- Seu amor te trouxe pra uma ilha em pleno outono. E agora ele está te pedindo novamente perdão, e a chance de te dar algo digno de uma lembrança sua.

- Hahaha... Você tinha que terminar com uma piada! Tão típico!

- Exceto pelo fato de que não é nenhuma piada.

E outra vez, Monster se aproximou demais de mim, estava pronta para desviar de seus lábios, quando eles tocaram minha testa. Não tinha certeza se minha expressão era de alivio ou decepção. Queria lutar contra o beijo para ceder completamente depois, e ele beijou minha testa. É, acho que entra na lista de decepção.

- Deita aqui comigo, vamos olhar um pouco esse céu lindo.

Deitamos então sobre a areia, e realmente, o céu estava lindo, todo iluminado com as estrelas e a lua cheia subindo lentamente. Ficamos bem próximos, quase abraçados, mas em total silêncio e nenhum movimento.

Eu sabia que aquela noite ainda traria outras surpresas, mas não queria tentar prever nada. Tinha ao meu lado alguém que me fizera descobrir o significado da palavra “paciência”, então, era justo que eu tentasse aquietar meu coração escandaloso.

Tínhamos o som dos grilos, das ondas quebrando na areia, o som do vento balançando as árvores... E um novo som... Vindo dele. Chorando? Fiquei com medo de olhar, contive minha curiosidade e apenas o abracei sem dizer nada.

Ele respondeu ao abraço, pousou o braço direito sob meu pescoço e com a mão esquerda começou a acariciar meu braço, como quem tenta aquecer. Aquele silêncio, seguido do som do choro baixinho dele e o abraço ali, na areia, no meio da noite, fizeram nascer uma espécie de paz em mim.

Já não havia nada a perder, nada que não tivéssemos dito antes para machucar, ou afastar. Não havia outro motivo, senão nossa vontade – a nos manter inertes na areia. Não tínhamos que ser nada. Nem entender, ou aceitar coisa alguma. A nós, cabia somente deixar os minutos correrem – deixar o dia ir embora, deixar o mundo acontecer ao redor. Estávamos, enfim, criando uma lembrança. Algo para o resto de nossas vidas.

Um momento real, ainda que parecesse ser bonito e bom demais para ser verdade.

- Está frio aqui, Monster... Vamos entrar, estou congelando.

- Tudo bem.

Recolhemos as bandejas e seguimos para o chalé. Deixamos a pequena cozinha em ordem juntos, enquanto eu lavava as taças, ele deixava tudo enxuto e já arrumava lugar no armarinho para guardar os utensílios. Ele tinha muitos filmes no notebook, então aproveitamos para selecionar alguns que ambos ainda não tivessem assistido.

- Ah, Monster, vamos ver Django de novo!

- Mas já vimos esse filme tantas vezes...

- Eu gosto dele. Depois de Pulp Fiction, com certeza é meu favorito.

- Também gosto. Bom, então que seja Django.

Perdi a conta de quantos travesseiros havia naquela cama, quase não tinha espaço para nós. Finalmente, conseguimos nos posicionar confortavelmente e demos início à sessão cinema na ilha. Sentia um sono absurdo, e ao mesmo tempo, não queria perder nenhum segundo que fosse da companhia dele, embora soubesse que ele ainda estaria ali quando eu acordasse.

Depois de muito relutar, acabei adormecendo.

Acordei cerca de duas horas depois com o som da música que vinha do notebook. Sabe aquele momento em que a música externa penetra no sonho? Foi algo assim. Monster também havia adormecido, ainda estava com os óculos, que eu tirei da forma mais sutil que consegui. Ele se moveu com o meu toque, mas logo voltou ao sono profundo.

Sorri ao vê-lo ali, tão silencioso e pacífico.

Não sei dizer quantas vezes sonhei em viver novamente um momento como aquele, em que eu acordava ao seu lado, e para completar, ao som de “By your side”, da Sade.

 

“Eu quero uma foto dessa noite. Só a imagem mental não é suficiente. Ele nunca esteve tão lindo quanto agora – todo indefeso, dormindo esse sono pesado, tão tranquilo, tão lindo... Acho que alguém aqui está em apuros...”

 

Levantei da cama tentando não fazer barulho e caminhei em direção à mesa, queria meu cigarro e, se possível, outra taça de vinho.

Embora Monster não fumasse e não pudesse beber muito, ele não mostrava o menor incômodo com o fato de sua “sei-la-o-quê” fumar e beber muito mais que ele.

A porta rangeu mesmo com minha melhor tentativa de abrir sem incomodar o sono de Monster, e ele deu um pulo na cama, levantou assustado.

- Desculpe, desculpe! Eu só ia lá fora fumar, não queria acordá-lo! Por favor, me desculpe... E volte a dormir...

- Tudo bem, que horas são?

- Acho que quase cinco.

- Não vimos o filme todo...

- Não esperava que isso acontecesse, de qualquer forma. Monster, vou lá fora fumar, ok? Volto logo.

- Vou voltar a dormir, se não se importar.

- Faça isso, eu entro logo em seguida.

Às cinco da manhã, aquela ilha parecia mais uma geladeira gigante. O tempo estava fechando, o vento fazia bastante barulho entre as árvores e eu tive que me apressar com o cigarro para voltar logo e me aquecer debaixo dos edredons.

Corri para a cama com o queixo tremendo e as mãos congelando.

- Ai que frio, meu deus!

- Vem aqui, Boo. Mas não toca em mim, odeio mãos geladas – Monster riu.

Como eu tinha voltado do vento gelado, o corpo dele parecia muito quente, e foi quase impossível não notar que havia uma protuberância evidente sob suas calças.  Tentei disfarçar e mudar a posição do meu corpo a fim de não encostar-me naquela região, mas ele se posicionou ainda mais próximo de mim.

Senti que corria perigo – pela primeira vez.

- Monster?

- Hum?

- Você sempre acorda assim?

- Assim como?

- Assim...

- Ah, isso. É, sempre...

- Ok, vou voltar a dormir então.

- Vai?

- Não vou?

- Não sei...

Mas enquanto eu tentava fingir que nada estava acontecendo, senti sua respiração em minha nuca, e logo seus lábios estavam tocando meu pescoço, orelha, e eu não queria nem pensar em lutar contra o que quer que fosse. Ele virou meu rosto delicadamente, e eu terminei de virar meu corpo, nos posicionamos de frente um para o outro.

Toquei seu rosto, corri o dedo contornando seus lábios – ele sempre teve uma boca linda, o sorriso mais gostoso de se ver. Amava vê-lo em dias felizes, era uma imagem única. Nossas respirações pareciam sincronizadas. Aproximamo-nos mais, até que nossos lábios finalmente se tocassem, mas ainda não era um beijo. Eram só os lábios juntos – senti meu corpo pegando fogo, até que não pude mais conter o impulso e dei início a um longo e intenso beijo.

Foi como um transe. Uma experiência diferente, porque eu sempre imaginei como isso pudesse ser, e de repente, estava acontecendo – eu e ele, juntos, ele dentro de mim, nossos movimentos, o calor, o suor dele pingando em meu corpo, meu cabelo bagunçado, a mão dele tentando arrumar as madeixas que caiam sobre o rosto, o modo como ele me segurava pelos ombros, a força que eu fazia para garantir que ele não se soltasse de mim, minhas mãos inconstantes correndo suas costas, peito, segurando seu rosto, beijando sem acreditar que nada daquilo estivesse de fato acontecendo. Tudo parecia bom, o gosto dele, o movimento de sua língua, sua dança sobre mim, seu olhar me fitando enquanto eu chegava ao clímax. Eram muitas sensações e nenhuma habilidade para defini-las. Não se parecia com nada do que eu havia imaginado – era infinitamente melhor, mais gostoso, era como uma queda livre – muita adrenalina, o corpo experimentando um desejo incontrolável, a mente entrando em parafuso, foi louco – muito mais louco do que eu possa descrever.

 Entendi porque era tão bom estar com alguém por quem nutrimos algum tipo de sentimento especial.

Após ter passado tantos anos sozinha, escrevendo livros sobre pessoas felizes e suas histórias fantásticas, era como se eu tivesse me tornado uma personagem de minha própria criação.

"Aos 32, finalmente, depois de longos doze anos, meu deus, doze anos!"

        

 

 

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