segunda-feira, 20 de março de 2023

Jornada Íntima - capítulo 7

Bacana, o cachorro caramelo

 

Enquanto caminhava pela areia, um cachorro de cor caramelo veio correndo em minha direção. Parecia muito alegre, e ver seu jeito empolgado de pedir atenção me fez sorrir.

- Olá, lindinho! Que bebê bonito você é! Você mora aqui, garotão? 

Era muito dócil, foi fácil já esfregar os pelos curtos dele fazendo carinho,  lembrando com saudade do meu próprio cachorro, que ficara sob os cuidados do meu irmão durante minha ausência temporária.

Ele latia e balançava o rabinho sem parar, parecia realmente muito feliz.

Ouvi alguém chamando por um “Bacana”, entendi que esse devia ser o nome dele.

- Você é o Bacana, meninão? Que nome legal, se parece mesmo com você!

A voz era masculina. Fiquei com o Bacana ali na beira da água até seu dono se aproximar.

- Ah, bom dia! Não esperava ver outros loucos além de mim nesta ilha em pleno inverno!

- Digo o mesmo! – o homem riu, estendendo a mão direita para me cumprimentar -  Muito prazer, sou o Bruno.

- Oh, Bruno, o prazer é meu. Sou a Lana.

Apertamos as mãos, e eu sorri pra quebrar o gelo.

- Então, está sozinha na ilha, Lana?

- Não, não... Na verdade estou naquele primeiro chalé. Vim com um amigo. Ele é preguiçoso demais, então resolvi caminhar sozinha, mesmo.... E você? Só com o Bacana?

- Vim com um grupo de amigos, na verdade, pesquisadores. Sempre alugamos este espaço. Legal saber que temos companhia desta vez!

- Sim, realmente! Esse lugar pode ser bem solitário, e eu podia jurar que não havia mais nada além das três casinhas. 

- Estamos do outro lado da ilha, mas tem, sim, é um único espaço, só que bem maior, Acho que, juntando os três chalés, ainda sobra espaço. É para reunir mais pessoas, mesmo. Menos intimista. Os chalés são para luas de mel! Já nós, fazemos luau aqui quando não chove. Talvez hoje tenhamos sorte, se o tempo continuar firme.

- Isso seria ótimo. Mas estou na ilha há dois dias, não os vi antes. A ilha não parece tão grande.

- Não tivemos chance ainda, chegamos ontem.

- Ah, está explicado, não abrimos a porta do chalé ontem por conta da chuva. 

- Sim, quase nos obrigou a adiar mais um pouco a viagem. Mas viemos! E se tudo correr bem, lá pelas dez teremos uma fogueira decente, bebidas, música e alguma coisa para beliscar. Venha, traga seu amigo.

- Vou falar com ele, sim! A ideia é ótima. Bom, vou caminhar... Creio ter alguns quilômetros pela frente até chegar ao meu chalé.

- Vai andar quase três quilômetros entre pedras e areia.

- Uau! Você já calculou?

- Conheço esta ilha de ponta a ponta. Cataguases é quase nossa segunda casa.

- Interessante! Depois vou querer saber mais, então!

- Será um prazer! Aguardamos vocês hoje à noite!

- Ok, obrigada pelo convite!

- Sem problemas!

Dei meia volta e pareceu impossível segurar o sorriso que brotara em meu rosto do nada.

Bruno era simpático, e se não bastasse, também era lindo: dentes perfeitamente alinhados com um sorriso de perder o fôlego, cabelos cacheados meio ruivos, olhos azuis como o oceano. Rosto simétrico, e uma voz grave, combinava com o porte físico e aquelas costas de nadador olímpico. Minha mente já calculava o quanto me faria satisfeita estar de volta àquele lado da ilha ao anoitecer, e se Monster não quisesse me acompanhar, eu não perderia absolutamente nada.

Caminhei tranquilamente de volta ao chalé, cheguei por volta das onze da manhã, e Monster ainda dormia.

Não me importei com barulho, nem nada. O sol brilhava forte do lado de fora, aquele era um dia perfeito para não se desperdiçar com sono. Preparei um lanche de pão de fôrma com patê e tomates e enchi um copo grande com suco de laranja. Comi alegre, imaginando o quão promissora seria a noite, ver pessoas, ouvir outras músicas. Não que eu não quisesse estar onde estava, com quem estava. Mas sentia que precisava respirar fora do chalé, já estava cansada de ficar presa no paraíso.

 

“Com ou sem o Monster”, repetia mentalmente.

 

Monster, também conhecido por Michael, seu nome de batismo, era algo em minha vida considerado “paralelo”. Lembro de ter comentado com um primo meu que ele era uma espécie de amor platônico, que provavelmente duraria a vida toda.  

 

“Tenho minha vida, nunca parei nada por causa dele. É só que, se estivéssemos aqui agora, e ele me ligasse, pedindo para encontrá-lo, eu iria. Se ele quisesse um beijo, eu daria. Se quisesse me raptar, esse direito lhe seria dado. Em outras palavras, só há uma pessoa que me faria mudar a direção das coisas – essa pessoa é o Michael. Não há outro homem que eu tenha amado por tanto tempo, não há outro que tenha exigido de mim tanta coragem. Minha vida segue. Conhecerei outros homens, tenho certeza disso. Mas se tivermos a nossa chance, eu não pensaria duas vezes. Meu mundo seria dele.”

 

Meu primo me chamou de louca. Tão óbvio.

Eu não era nenhuma santa. Gostava da ideia de ter com quem compartilhar toda a minha insanidade. Nunca me prendi a ninguém, exceto João, um músico, na verdade, um exímio guitarrista. Mas isso foi há muitos anos. Chegamos a ficar noivos, e depois, tudo desmoronou e eu desisti de namorar outra vez. Vivi para meu trabalho, minhas histórias, viagens, amigos. E para Michael, porque afinal de contas, ele também era meu outro lado. Michael, meu Monster.

Coloquei uma pasta aleatória de músicas dele para tocar no notebook e terminei meu lanche tranquilamente. Monster nem se moveu.

“Esse remédio deve ser forte mesmo..."

Segui para um banho demorado e relaxante.

Estava ansiosa e animada com a ideia de ter algo diferente para fazer naquela noite, pensei novamente nos olhos lindos de Bruno, ele pareceu tão interessante! Olhar misterioso, voz gostosa...

E então, fui interrompida por batidas apressadas na porta.

- Boo! Abre a porta, preciso usar o banheiro! – gritou Monster.

- Estou ocupada, você não pode esperar? – não queria ser interrompida, especialmente não agora, que estava com o corpo todo cheio de espuma.

- Não posso, abre logo essa porta!

E as batidas continuaram até que não foi mais possível ignorar.

- Mas que saco, Monster!

Apressei-me para alcançar uma toalha e enrolei-a em meu corpo de qualquer forma para poder abrir a porta para a criatura desesperada do outro lado.

- Anda logo, Boo!

E mal abri, ele correu para o vaso.

- Que desespero, hein! Da próxima vez, vá lá fora. Vocês têm a grande vantagem de poder fazer isso em qualquer lugar, faça uso dela!

O box do banheiro era claro, então preferi aguardar até que ele terminasse o que tivesse ido fazer para voltar ao meu banho.

- Pode continuar seu banho, Boo....

- Vou continuar. Assim que você se retirar.

- Lá vem você de novo. Ainda está brava comigo?

- O que meu banho tem a ver com estar ou não brava com você?

- Por que não quer continuar o banho na minha presença?

- Porque eu já havia começado meu banho num evento solo, Monster. E você me interrompeu.

- Vamos ficar nesse clima? Sério?

Ele mordeu o lábio inferior e eu preferi virar o rosto. A boca dele exercia certo poder sobre minhas habilidades de decisão.

- Ei, Boo! Aqui, olha pra mim!

Monster segurou meu rosto com a mão, obrigando-me a virar para sua direção.

- O que é?

- Vai me tratar assim?

- Assim, como, criatura? Só quero terminar meu banho. Posso?

- Pode! Termine seu banho. Fique à vontade. Desculpe tê-la interrompido.

Bati a porta com raiva.

 

“Filho da mãe, é tudo na hora que ele quer... Mas não hoje!”

 

Apesar do sol e de um céu lindo lá fora, dentro do chalé, o clima era tenso.

Terminei o banho, vesti a troca de roupa que havia separado e saí com a toalha enrolada na cabeça, imaginando que o encontraria na cama.

Para minha surpresa, a cama e o moletom que ele usara naquela manhã estavam devidamente arrumados – a cama feita e o moletom dobrado sobre ela.

A porta do chalé estava aberta. Monster estava sentado sobre a areia: bermuda, descalço, regata branca e óculos escuros. Seus cabelos balançavam com o vento – lindos cabelos lisos e negros.

Deixei a toalha num pequeno varal improvisado e segui em sua direção.

- Passou o stress, criatura? – perguntei, em tom de brincadeira. Juntei-me a ele na areia, ignorando o fato de ter saído do banho minutos atrás.

- Eu preferia antes.

- Antes do quê?

- Antes, quando você acreditava em mim.

- Do que estamos falando agora?

Monster tirou os óculos e me encarou.

- Estamos falando de eu ter bons motivos para uma viagem, que deveria ser inesquecível e se transformou numa piada.

- Ah, é? A viagem se transformou numa piada?

- E não? Você acabou de me evitar lá dentro. A ideia era esquecer tudo e deixar as coisas acontecerem.

- Pensei que estivéssemos fazendo isso. Aliás, pensei, até vê-lo como vi.

- Eu não estou morrendo, ok? Passei mal, será que eu posso ser perdoado por isso? Ou devo fazer as malas e dizer que sinto muito por ter transformado suas férias e seu aniversário num cenário de filme de terror?

- Em pensar que eu era a dramática aqui. As coisas mudam!

- Você me entendeu.

- Olha só... Enquanto caminhava esta manhã, eu encontrei um cara que está numa casa há alguns quilômetros daqui. Ele me pareceu bem legal, nos convidou pra um luau que farão esta noite.

- Que rápida! Eu durmo e você já conhece outra pessoa.

- Vou fingir que não ouvi essa.

- Desculpa, desculpa.

- Se você não quiser ir, pode ficar. Eu vou.

Terminei a frase e me levantei sem olhar para trás.

Voltei para o chalé, fechei a porta e deitei sobre a cama arrumada, tendo o cuidado de mover o moletom de Monster da cama para cima da mala dele.

Cochilei quase que imediatamente.

Na sombra, o ar ainda parecia gelado, então joguei o edredom pesado sobre mim, ajeitei os travesseiros da forma mais confortável que consegui e permaneci em silêncio. Sentia os olhos pesados, o cansaço daquela manhã atípica estava me alcançando, e, se quisesse mesmo participar do luau, teria que dormir um pouco antes.

A porta rangeu e Monster entrou. Abri os olhos para me certificar de que era ele e os fechei novamente em seguida.

 

“Ele deve estar com fome, mas minha preguiça de perguntar é maior que a minha preocupação neste momento...”

 

Monster fez barulho na cozinha, então deduzi que estivesse preparando algo para comer.

Minutos depois, deitou-se ao meu lado.

Abri os olhos, aguardando seu próximo passo.

- Calma... Pode fechar os olhos... Vou ficar aqui quietinho. Prometo. Já entendi que você não quer. Vou me comportar.

- Não é isso...

- Quer que eu saia? Eu saio.

- Não precisa falar assim... Não tem que sair, fique aqui comigo.

Segurei sua mão e fechei novamente os olhos. Monster chegou mais perto de mim, senti seus lábios tocando os meus suavemente. Permaneci de olhos fechados. Ele usou sua outra mão para colocar parte de meu cabelo atrás da orelha e pousou em seguida a palma da mão em meu ombro direito.

- Você continua tão linda... Tem muito da Lana que conheci um milhão de anos atrás.

Ainda de olhos fechados, soltei um riso baixo.

- Fala o nome da droga...

- Que droga?

- Essa, que você usou, porque eu também quero!

- Boba. Sempre te achei linda.

- Só esqueceu de me contar...

- Perdão. Você é linda. Sempre foi.

Suspirei. Abri lentamente os olhos – Monster me encarava com um olhar indecifrável.

- O que foi, pessoa?

- Preciso te beijar de novo.

A mão quente de Monster tocou meu rosto e ele se aproximou novamente. Seus lábios macios tocaram os meus, mais demoradamente, e outra vez ele me olhou nos olhos.

- Posso?

Fiz que sim com a cabeça e ele então colou os lábios nos meus.

O movimento lento e intenso de sua língua provocou reações imediatas em mim. Precisei tocar seu corpo, abraçá-lo. Estando ali, entendia porque ele me fazia desistir de tudo. Eu me encontrava em seu abraço. Era meu lugar favorito no mundo. Sempre fora. Sempre seria.

 

 

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