sexta-feira, 17 de março de 2023

Jornada Íntima - capítulo 5

 Música: Space Odity, David Bowie

Eu caminhava por uma rua de algum bairro desconhecido. Era fim de uma tarde cinza, céu nublado. Não havia ninguém comigo, apenas carros passando vez ou outra no que deveria ser uma avenida. Ao longe, no alto, um avião se aproximava – um percurso normal. 

Mas algo não estava bem com aquele avião. Eu conseguia ver que sua asa esquerda soltava uma espécie de fumaça preta pesada, ela caia através do que me pareciam pequenos tubos. 

“Que droga, isso não está certo... Essa fumaça não podia estar aí...”

De repente, parte da asa simplesmente se soltou do avião e caiu bem próxima de mim. Visto do alto, o avião parecia pequeno, mas aquele pedaço de asa, agora no chão, era imenso. Pela envergadura na ponta da asa, reconheci a marca: era um Boeing, provavelmente um modelo 737 (embora morresse de medo de voar, eu sempre fui apaixonada por aviões).

A tragédia era iminente.

Em segundos, a imensa máquina despencou no chão, causando uma enorme explosão. O avião se transformou em fragmentos, e não havia sobreviventes.

Esfreguei os olhos, e ao abri-los, estava na cama do chalé. Mais um clássico pesadelo com queda de aviões. Tentei durante anos encontrar explicação para essa sequência infinita de pesadelos, sem sucesso.

Ainda sem me virar, apenas estiquei o braço para alcançar Monster e me deparei com o espaço dele na cama vazio. Pela luz que vinha da fresta na parte inferior da porta fechada do banheiro, ele estava lá. O relógio marcava 04:47 da madrugada – a noite havia passado rápido.

Levantei ainda meio cambaleante e segui para a cozinha atrás de um copo d’água. Minha garganta estava seca e a dor de cabeça indicava que eu teria uma bela manhã de ressaca pela frente. Procurei no meio da bagunça da mala por um analgésico.

“Impossível encontrar alguma coisa nessa zona... Quer saber, vou pedir ao Monster!”

 

Como a porta não estava trancada, bati de leve e já me preparava para abri-la, quando fui interrompida por um grito de Monster.

- Está ocupado, droga!

- Calma, Monster, sou eu! – Nunca havia visto Monster gritar com ninguém e, de repente, no meio da madrugada, numa ilha, numa semana “romântica”, ele gritou. E justo comigo.

- Hora errada, por favor, fecha a porta, Boo!

- O que há com você?

- Nada, me deixa sozinho.

- Você está ajoelhado sobre o vaso, Monster. Nada uma ova! O que você tem?

Ignorei o pedido dele para me afastar e entrei apressada. Ele tentou fechar a tampa do vaso, mas antes que pudesse completar a tarefa, vi as manchas do que devia ser sangue.

- O que diabos está acontecendo aqui, Monster?

- Bebi demais, só isso. Eu não te pedi para sair daqui? Pode, por favor, me deixar sozinho?

Monster estava pálido, com a roupa úmida. Gotas de suor escorriam de sua testa. Parecia longe, muito longe de estar bem. Eu estava com sintomas de ressaca, mas não era como a imagem diante de mim.

- Como posso te ajudar? Por favor, não me diz pra sair de perto, porque isso eu não vou fazer. Tem algum remédio que você usa quando não está bem? Você quer que eu pegue? Monster, por favor!

Mas ele sequer me deixava tocá-lo. Tentava me aproximar e ele virava o rosto, se esquivava de qualquer tentativa de toque meu.

- Por que está fazendo isso, Monster? Você precisa de ajuda, droga! Me deixa ajudar!

- Sai daqui! – ele berrou novamente, desta vez, virou-se para me encarar, e seu olhar era de fúria – uma fúria que mais parecia dor aguda.

Saí do banheiro em choque, com lágrimas já escorrendo. Depois de uma noite “perfeita”, aquela madrugada havia se transformado na continuação do meu pesadelo com aviões.

Eu não tinha pra quem ligar, não havia ninguém além dele ali comigo, e ele me expulsara do banheiro, irado. Pela expressão de dor e palidez de seu rosto, devia ser algo relacionado ao seu problema de saúde. E isso significava uma coisa só: ele mentiu sobre estar bem.

Ouvi o som da água caindo – devia ter entrado no banho.

Mais meia hora se passou, e a essa altura, era possível ver o dia nascendo. Liguei a cafeteira e me agasalhei para sair do chalé.

Com uma caneca cheia de café e carregando uma manta leve, saí.

Joguei a manta sobre uma das cadeiras de praia que estavam encostadas na varanda e a carreguei comigo até a beira do mar. Seria um longo dia. Com Monster trancado no banheiro e claros sinais de que sua saúde não estava tão bem como ele havia prometido, eu cobraria explicações. E isso geraria conflitos, que desejei tanto poder evitar.

Fui invadida por uma tristeza que fazia com que as lágrimas não cessassem mais. De repente eu não chorava mais apenas pelo modo agressivo com que fora expulsa do banheiro por Monster – agora era tudo. 

Todos os últimos eventos, os dois dias incrivelmente felizes que pareciam ter ido por água abaixo, as pequenas mentiras que ele havia me contado ao longo dos anos, tudo que fiz para mantê-lo em minha vida, as viagens malucas para acompanhá-lo em suas férias pelo mundo, todos os planos desfeitos, os desencontros, os anos sem contato – minha busca infeliz. Lembrei de como ele desistiu fácil do que tínhamos. Monster, na verdade, sempre desistiu fácil demais de mim. 

E ele sabia que eu aceitaria qualquer demonstração de afeto. Era meu perfil – embora tivesse uma vida paralela à toda aquela insanidade que era nosso relacionamento, eu me transformava numa criança feliz diante de sua presença. 

Contentava-me com os pequenos presentes, as mensagens vindas dos diferentes países que ele eventualmente visitava. Era sua forma de dizer que se importava, ou que pelo menos, lembrava da minha existência.

Eu ainda tinha o colar com pingente de maple leaf em prata. 

Nunca deixei de usá-lo. Assim, carregaria parte dele comigo por onde quer que eu fosse. A história daquele colar nos fazia rir sempre.

Certa vez, Monster veio ao Brasil para passar suas férias – vinte bons dias para fazer qualquer coisa que lhe apetecesse.

Normalmente, teríamos combinado com meses de antecedência caso houvesse espaço em sua agenda para um encontro comigo. Mas, desta vez, ele resolveu me surpreender com um telefonema inesperado.

- Ei, doidinha! Lembra de mim?

- Ah, não creio! Monster! – coração prontamente acelerado.

- Vou enviar um endereço via sms para você. Quero que me encontre neste lugar hoje à noite, por volta das 21 horas, ok?

- Uau, mas nem vai perguntar se eu posso?

- Eu sei que pode.

- Está certo... Vemo-nos logo mais então.

- Isso ai, Boo! Até mais!

Era um restaurante japonês em Pinheiros, na grande São Paulo. Um jantar com mesa reservada.

Naquela noite, o assunto foi meu novo emprego e minhas ambições para o futuro. Ele pareceu satisfeito com minhas novidades. Seguimos para um motel de luxo que ficava paralelo à marginal.

Monster e eu num motel? Ora, ora.

Apenas para podermos ficar na companhia um do outro até o dia amanhecer. A regra era clara: nada de contatos íntimos. Éramos amigos. Amigos não fazem sexo. Amigos são amigos.

No final daquela noite, despedimo-nos e eu retornei para minha pacata cidade interiorana. O engraçado veio depois, quando Monster e eu nos encontramos num chat, e ele me disse, chateado, que havia perdido o presente que trouxera para mim.

Eu contei a ele que encontrara um colar que me fazia lembrar uma folha de maconha. Ao dar os detalhes do colar, ele caiu na gargalhada:

- Boo, não acredito que você não reconheceu o pingente!

- Como assim?

- Esse era o “meu presente” para você: um colar com pingente de maple leaf, o símbolo do Canadá!

- Ah!

- E você nem pra me falar?

- E como é que eu ia saber? Não estava embrulhado para presente, pessoa!

- Eu pretendia colocar em seu pescoço e te fazer uma surpresa.

- Poxa vida... Mas de qualquer forma, o colar está comigo. Presente entregue!

- Sim... E então, eu espero que tenha gostado.

- Amei.

Foi uma noite especialmente boa, e desde então, a pequena maple leaf estava sempre comigo - sentada ali diante da imensidão azul, fechei a mão em torno do pequeno pingente, desejando poder voltar no tempo.

A vontade de permanecer na ilha fora embora. Eu queria a minha realidade, meu apartamento, meu mundo, queria poder chorar sem ser incomodada. Começava a entender o motivo de toda aquela mudança de atitude de Monster, e entender não me agradava nem um pouco.

O sol dava seus primeiros sinais – teríamos ao menos uma manhã sem chuva, apesar do frio da ilha.

Senti algo gelado tocar meu ombro.

- Me desculpe. Desculpe por eu ter gritado com você.

Virei para olhá-lo. Monster ainda estava pálido, porém parecia melhor do que quando o vi mais cedo, caído no chão do banheiro. Vestia um conjunto de moletom cinza claro, meias e chinelos. Os cabelos estavam secos – ele provavelmente havia usado o secador, não que eu tenha ouvido coisa alguma àquela distância. Ele aparentava estar doente, mas continuava lindo – talvez até mais que o normal.

- O que houve com você?

Minha preocupação era real. E eu aguentaria uma briga, se fosse necessário, mas não terminaria aquela conversa sem arrancar dele o que quer que estivesse escondendo.

Monster se abaixou, até ficar apoiado nas pernas, numa linha um pouco abaixo da minha. Uma de suas mãos segurava o encosto da minha cadeira e a outra ficou apoiada na testa, protegendo seus olhos do sol.

- E se eu disser que prefiro não falar sobre isso? Vamos simplificar esclarecendo apenas que bebi mais do que devia ontem e meu fígado não processou o álcool muito bem.

- Seu fígado não processou o álcool muito bem? – perguntei em tom irônico.

- Isso mesmo. Mas eu já tomei a medicação apropriada para situações assim, e tudo que preciso agora é de algumas horas de sono. Quando acordar, estarei novo em folha. Ok?

- Não. Nós vamos embora.

- Você está louca? De onde tirou que vamos embora?

Ele se levantou, me dando a impressão de que estivesse a ponto de gritar comigo outra vez.

- Claramente você não está bem, não é preciso ser muito inteligente para perceber isso. Eu bebi demais ontem, estou de ressaca, sinto dores na cabeça, acordei zonza, e tudo mais. Mas não vomitei sangue. Não fiquei largada no banheiro, não gritei! Então, não tente me convencer de que está tudo bem, Ok? Não vou ficar presa no fim do mundo com você passando mal desse jeito! Temos que voltar pro continente e temos que voltar agora!

- Não viaja, Boo. Você está surtando à toa. Não tem nada de errado comigo. Só não posso exagerar mais no álcool. Eu não sou idiota, não ficaria numa ilha com você se não tivesse condições pra isso. Se você não quiser ficar, então é problema seu – sua vontade. Mas não faça de hoje de manhã uma desculpa pra sair daqui antes da hora!

- Você é quem sabe, Monster. Eu não tenho nenhum problema. É sua saúde que está em jogo aqui. Que fique claro.

- Eu sei me cuidar. Agora, por favor, podemos entrar? Ou pelo menos, você se incomoda se eu entrar? Tomei um remédio que dá sono, preciso dormir um pouco.

- Fique a vontade. Eu vou aproveitar o sol e caminhar um pouco.

- Tudo bem. Estarei lá dentro. E novamente, me desculpe por ter gritado com você.

- Ok.

 


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